Quando eu tinha por volta de 8 anos de idade passei a me interessar significativamente pelo extremo sul da América. Passava horas analisando um velho mapa que eu havia ganhado de meu avô de presente. Nele, cada pequeno pedaço de terra ia se fragmentando naquela estreita e longa faixa de terra que apontava na direção ao Polo Sul.
Desde criança, sempre fui fascinado por mapas e adoro vê-los em detalhes. Quando ainda criança, sonhava que estava a bordo de algum barco ou pequeno avião atravessando todos aqueles contornos e desenhos, cujos traçados, a maioria deles irregulares, davam ainda mais vida à minha imaginação.
Alguns anos depois entrei para Universidade e já estando já por volta dos 18 anos de idade, participei de um trabalho (concurso) onde seriam escolhidas algumas cartas a serem enviadas à Antártida, destinadas ao grupo de oficiais brasileiros que passariam o inverno de 1993 na Estação Antártica Comandante Ferraz – Ilha Rei George.
Não sabia eu que minha carta seria a única escolhida dentre tantas outras. Muito menos que, em 01/08/1993 ela seria respondida. Quando recebi a resposta não foi apenas uma emoção, mas também o reacender de um sonho que eu havia guardado desde a infância dentro de mim: o de conhecer o extremo sul da América.
Não fazia a menor ideia que, passados 20 anos deste episódio, eu estaria arrumando minha mochila para cruzar a Terra do Fogo (extremo sul da Patagônia) e chegar até bem próximo à Antártida. Mais especificamente nos Confins do Mundo, ou seja, pouco além da cidade de Ushuaia, na Argentina.
Iniciei minha viagem no dia 03 de Novembro de 2013 e tive ao todo 21 dias para realizar todo o trajeto (somente de ida). Ao final, tomei um voo de retorno direto ao Brasil..
A aventura iniciou numa manhã de sábado, onde tomei um voo de Santa Catarina até a cidade de São Paulo. Em seguida, um outro voo me levou à cidade de El Calafate, na Argentina. Esta se localiza na região de imensos lagos que se abastecem constantemente do derretimento regular de enormes Glaciares que existem na região. Ali perto fica também a pequena vila de El Chaltén, tida como a capital Argentina do Trecking e onde fica a conhecida montanha Fitz Roy, uma das mais difíceis e temidas do mundo para se escalar.
De lá segui parte por terra, parte por água e um outro tanto pelo ar, e fui até onde eu pude chegar, atravessando áreas completamente desertas do continente e também de ilhas quase inexploradas pelo homem, até alcançar o último ponto habitado do planeta antes de se chegar na Antártida: Cabo de Hornos.
De El Calafate até Cabo de Hornos, são pouco mais de 650 kms em linha reta. Esta distância quase que duplica, caso opte-se por fazer todo o trajeto por terra. Vale lembrar que existem estradas relativamente boas nas ilhas maiores, onde pode-se seguir em segurança. Porém, entre uma ilha e outra, é necessário a utilização de Ferrys que fazem o traslado de pessoas e veículos entre as mesmas.
Dependendo do caminho que tomarmos, temos de serpentear entre o Chile e a Argentina até atingirmos o ponto mais austral do planeta, ou seja, o pequeno povoado onde vivem 33 pessoas, chamado Puerto Toro, na Ilha Navarino, local onde se unem os oceanos Atlântico e Pacífico.
De El Calafate até a Província de Cabo de Hornos atravessei desertos e cruzei montanhas, lagos, glaciares, estreitos de mar e sem fim. Também encontrei pequenos povoados onde ainda é possível conhecer descendentes dos povos ancestrais da Terra do Fogo.
Uma outra coisa que deve-se ter em mente é que não devemos confundir a Terra do Fogo com a Patagônia, embora as duas estejam praticamente lado a lado e seus ecossistemas são muito parecidos. A Patagônia é um imenso deserto que abrange uma boa parte dos territórios argentino e chileno. Já Terra do Fogo, pode-se dizer que é o território mais austral do planeta e se encontra ao sul do território patagônico. Suas terras são assim chamadas devido aos exploradores que, ao chegarem por lá, avistaram ainda do mar enormes colunas de fumaça que se formavam desde o chão até o céu. Pouco depois de descerem em terra e explorarem melhor aquela parte tão longínqua do planeta, viram que se tratava de enormes fogueiras feitas pelos povos nativos com o intuito de se manterem aquecidos devido ao constante frio naquela região.
Uma outra curiosidade que existe na Patagônia é a Cordilheira dos Andes. Embora esta perca relativamente sua altitude quando se aproxima do extremos sul do continente, ela continua forte e vigorosa, com seus picos nevados praticamente ao longo de todo o ano. Daí a origem do termo “neves eternas”, porque jamais derreteram completamente desde a sua formação inicial a milhares de anos. A Cordilheira dos Andes atravessa toda a Patagônia e praticamente forma uma linha natural e divisória entre a Argentina e o Chile. Quando atinge a Terra do Fogo ela cruza a Ilha Grande no sentido Leste/Oeste, perdendo gradualmente atitude até submergir completamente próximo o Ilha dos Estados. Ali a perdemos de vista, porém ela se mantém submersa e ressurge majestosamente no Continente Antártico.
Até alguns anos atrás, mais especificamente até a década de 60/70, o único meio de se chegar por terra ao “Fim do Mundo” era através de uma única e antiga estrada que foi aberta há muitas décadas, cujo traçado teve como base um antigo “passo” ou passagem que foi projetada inicialmente de forma muito rudimentar pelos povos ancestrais que habitavam o extremo sul e que esporadicamente realizavam expedições ao longo do território fueguino. Essa ficou conhecida como “Paso Garibaldi” e ainda hoje é um marco histórico para a região. O nome Garibaldi não é derivado de Giuseppe Garibaldi, mas a de um cidadão descendente de índio (Selknam) que trabalhou para a Província da Terra do Fogo. Conto um pouquinho de sua história em meu livro. Junto a ele (passo) se entrelaçam as duas estradas que cruzam a Cordilheira do Andes no extremo sul: a velha e a nova. Tive a oportunidade de cruzar os Andes pela estrada velha em um Jeep, uma aventura emocionante em razão do contexto histórico.
O
extremo sul é composto por uma infinidade de ilhas, algumas grandes e com alguma estrutura, outras sem quase nenhuma interferência humana. Em algumas é possível de se encontrar alguns abrigos feitos e deixados com o propósito de servir a pessoas perdidas, náufragos, exploradores e aventureiros. A composição de seus interiores geralmente é rudimentar, embora nelas possam ser encontradas ferramentas básicas que permite ao aventureiro manter-se vivo e até mesmo (se tiver alguma experiência) sair do local e chegar a algum outro onde possa pedir ajuda. Encontrei no interior de um desses abrigos ferramentas tais como: machado para cortar lenha, um aquecedor de ferro rudimentar, mapas do local, cartas náuticas, garrafas de água, mesa, pia, uma cama de palha e vários objetos deixados por aqueles que por alí passaram.
A Ilha Grande da Terra do Fogo é a maior extensão de terra que existe no extremo sul e nela existem diversos povoados, sendo que o mais conhecido é a cidade de Ushuaia. Nela existe também o Parque Nacional da Terra do Fogo, onde é possível se fazer um passeio de trem. O lugar é lindo e tentador para permanecer por um algum tempo. Embora a Terra do Fogo seja tida como selvagens, inexiste animais peçonhentos, tais como cobras, aranhas e escorpiões – o sonho de todo aventureiro. É possível avistar diversos animais ao longo do caminho, tais como zorros (pequenas raposas), guanacos, castores, coelhos, pássaros de diversas espécies e não raramente pinguins ao longo de todas as encostas e praias.
Deve-se considerar que, embora Ushuaia seja conhecida por muita gente como a “Cidade do Fim do Mundo”, há além dela outros dois pontos habitados antes de se chegar a Antártida: Puerto Williams e Puerto Toro. Ambos do outro lado do Canal Beagle, no território chileno. Ainda na região de Ushuaia, Fui até a Estância Harberton, um lugar mágico pela beleza e também por sua história. A propriedade foi fundada em 1886 pelo missionário Thomas Bridges e ainda hoje é administrada pela família.
Mais ou menos na mesma altura de Harberton, porém do outro lado do canal, encontra-se a pequena e ilustre cidade de Puerto Williams (Ilha Navarino), onde fica também a pequenna Villa Ukika, onde vivem os últimos descendentes do Povo Yagán (Yámana), originários da Terra do Fogo.
Puerto Williams é um lugar mágico e onde eu gostaria de viver por um tempo. Embora seja frio durante todo o ano, a beleza do lugar aliada ao calor humano dos seus habitantes fazem do lugar um pequeno paraíso perdido na terra. Não lembro de outro lugar que tenha me tocado tanto quanto a Ilha Navarino. Foi nela que Darwin permaneceu por cerca de 3 anos, onde analisou o desenvolvimento dos habitantes locais e da vida como um todo, lhe conferindo substancioso material para o desenvolvimento da sua teoria de evolução das espécies. Ainda na Ilha Navarino, tive a oportunidade de subir o Cerro Bandeira, locaizado no inicio da Trilha Navarino. Com cerca de 50 kms de extensão, é a trilha mais austral e uma das mais espetaculares do planeta. Dizem que, se tiver sorte ao acampar em algum de seus cumes, é possível se ver a aurora austral. Contam os nativos que, existem trilhas secundárias e escondidas ao longo dela e que levam a lugares mágicos e sagrados, onde os membros de uma antiga e milenar sociedade secreta realizavam seus rituais.
Também contam que nela se encontra uma passagem secreta capaz de levar o caminhante até o pequeno povoado de Puerto Toro, onde vivem 33 pessoas, local onde (até então) só é possível de chegar por mar. Do alto do Cerro Bandera é possível (em dias de tempo bom) se avistar a cidade de Ushuaia bem ao fundo – a cerca de quase 70 kms dali. Também é possível se avistar uma boa extensão do canal beagle e suas inúmeras ilhas.
Em Ukika foi fácil perceber o quanto foi naturalmente violenta a introdução do europeu em terras tão longínquas, dizimando não apenas um povo, mas também todo um contexto histórico e cultural no extremo sul. Em sua entrada uma placa traduz esse capítulo triste da história. Dos milhares de habitantes que haviam na Terra do Fogo, restou tão somente algumas poucas dezenas de descendentes. Dentre estes, apenas 1 único membro de sangue puro: a Sra. Cristina Calderón, declarada em 2003 pela Unesco como Monumento Histórico Vivo da Humanidade.
Difícil de ser contatada, as pessoas de Villa Ukika a protegem. Tive a enorme honra de estar em sua presença e de desfrutar da sua mágica companhia, experimentando um de seus mates com biscoitos caseiros. Embora seja uma pessoa simples e que goste de viver sem requintes, sua figura carrega consigo algo que julgo ser transcendental. Nunca vou esquecer dos momentos em que estive com ela e seus netos, os quais amavelmente me convidaram para conhecer as terras habitadas por seus ancestrais e onde se localiza o principal cemitério Yámana de toda Terra do Fogo. Quem conhece da cultura indígena sabe perfeitamente a honra que é ser convidado para conhecer as terras e o cemitério de um povo indígena, os quais tem esses lugares como sagrados. Este locais estabelecem uma conexão direta com os espíritos de seu povo.
As terras onde viviam os ancestrais do povo Yagán (Yámana) e onde se encontra o cemitério indígena é um dos mais belos da Ilha: a Bahia Mejillones. O local oferece uma beleza singular, além do fato de Darwin e um grande número de navegadores antárticos já terem passado por alí.
Pouco antes de terminar a viagem ainda conheci outros pontos históricos e interessantes nos arredores de Puerto Williams. Dentre eles a proa do rebocador “Yelcho”, responsável pelo mais dramático resgate marítimo realizado ao longo da história marítima no Território Antártico: o da Expedição Transantártica comandada por Ernest Henry Schackleton em 1914.
Na manhã seguinte, soube que o trajeto de barco entre a Ilha Navarino (Chile) e Ushuaia (Argentina) havia sido cancelado devido as condições climáticas. Tive de contatar algumas pessoas (pois meu voo de volta ao Brasil seria ainda na noite daquele mesmo dia). Muitas delas se propuseram a me ajudar.
Finalmente ainda antes do final da manhã consegui um voo que estaria trazendo alguns oficiais chilenos do Ushuaia para base naval de Puerto Williams e que retornaria vazio a sua origem. Com o dinheiro que me foi devolvido pela empresa náutica que faria a travessia, pude realizar uma das maiores aventuras que eu já fiz em minha vida: sobrevoar a bordo de um pequeno piper o Canal Beagle em um trajeto de cerca de 70 Kms que separa Puerto Williams (Ilha Navarino) e Ushuaia (Ilha Grande).
A bordo daquele pequeno avião, e diante de toda aquelas forças da natureza, me sentir como um grão de mostarda em meio a um infinito universo. Entre tantos sacolejos devido aos fortes ventos do extremo sul do planeta, percebi o quanto somos pequenos diante da imensidão da vida que nos cerca.
Por fim, cheguei a Ushuaia,com meu coração partido por ter que retornar a vida cotidiana, após 21 dias de peregrinação e aventura percorrendo os caminhos sagrados da Terra do Fogo. Depois que cheguei em casa, deixei a mochila sobre o sofá da sala e tomei um banho. Em seguida me deitei em minha cama para descansar e pensar um pouco sobre tudo que eu havia vivido, as pessoas que eu havia conhecido e os caminhos que eu havia percorrido. Percebi, após alguns minutos de meditação, que eu jamais seria o mesmo.
MAPAS:
1 – Patagônia e Terra do Fogo
2 – Terra do Fogo
3 – Terra do Fogo e Península Antártica